Desde 1984
Mário Ananias
01 de Dezembro de 2023
Sobre bem e mal (Parte 1)

Terça-feira clara, ensolarada e quente. Um daqueles dias para se estar numa piscina ou praia, uma bebida bem gelada, alguns petiscos e alguém com quem se pudesse conversar sobre coisas banais. 
Naquele ponto de ônibus, sem cobertura, próximo a embalagens de lixo com cheiro forte depois de rasgadas por cães abandonados, estava eu, suando muito e carregando em uma sacola pesada, um computador obsoleto que levava para manutenção. 
A princípio avaliei que seria bom estar ali, vitamina D, talvez um bronze na pele..., mas o ônibus demorou, bem mais do pensei, e as benesses imaginadas se tornaram adversidades. 
Duro carregar aquele trambolho por tantos degraus, tantos desníveis que acudiam entradas de garagens, mas tornavam calçadas pistas de obstáculos aos pedestres. A sequela de poliomielite que me atrofiou os músculos da perna esquerda e alguns da direita era a “cereja do bolo” para aquelas difíceis tarefas logísticas e de carga. 
Pouco acima do local em que eu aguardava o ônibus, um galho fugitivo, vindo de trás do muro chapiscado, produzia alguma sombra, mas estava a uns cinco ou seis metros da parada, rua acima. Aquilo era um oásis naquele calor forte, sem vento. Porém, carregar a bolsa até lá não parecia nada alvissareiro. Deixei-a ali e fui até a mínima sombra, continuando a esperar o tal bissexto ônibus. Cansado, desanimado, sonhando com uma bela cachoeira e, talvez, uma rede, um toca-discos portátil - luxo naqueles tempos - limonada, água-de-coco ou sorvete, quem sabe? Quase meia hora e nada do ônibus. 
Do outro lado daquele ponto-de-ônibus surge, da esquina, um menino de onze ou doze anos, com uniforme escolar, vindo na minha direção. Ele chega ao local onde deixei a bolsa preta, tipo “do Paraguai” e, sem pestanejar, crava nela um “bicudo” - termo mineiro que exprime forte chute - que derruba o meu desktop, com barulho similar a panelas despencando, e eu reclamo aos berros:
- Ôh praga nojenta! Por que cê tá chutando minha bolsa??
Já começando a correr para longe de mim ele grita:
- Desculpa ai, moço! Eu achei que era lixo.
Ainda não era..., mas talvez já devesse ser.
Hoje, muitos anos depois, reerguido das inúmeras quedas que aquele microcomputador jamais chegaria a levar; curado de muito mais hematomas do que os chutes que aquele garoto desferiria em toda a sua vida; consigo enxergar a cena sem paixão e me rio: eu todo torto tentando alcançar a bolsa e, claro, estapear o moleque enxerido, colocá-la de novo na vertical; o braço direito todo arranhado e ardendo de esforço, calor e suor, pois para conseguir algum impulso, tentei projetar o corpo instável usando aquele muro com chapisco e o resultado não foi dos melhores. 
Naquele momento, esperando ônibus ao sol, tendo minha bolsa chutada, eu me sentia um caco. Trabalhando por abrir portas e criar esperanças para pessoas carentes, através do Projeto Humanidades, cuja intensão era levar o básico de TI a pessoas de baixa renda, os empecilhos, muitas vezes, me pareciam insuperáveis.

 

(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro: Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias

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