Desde 1984
Breno Eustáquio
06 de Novembro de 2020
Raul e a maçã

Raul era um garoto serelepe. Adorava jogar bola com os amigos, brincar de pique pega e ir a escola. Era excelente em português e matemática e amava a professora. Tudo que ela dizia era sagrado. Ainda mais para aquele menino pobre e preto, que morava na favela, mas ouvia sempre de sua mãe o quanto era importante respeitar e seguir os ensinamentos dos professores. 

Um dia teve semana da boa alimentação na escola. Naquela ocasião, cada um levava uma fruta e a merendeira preparava uma grande salada, que era compartilhada na hora do recreio. Para Raul, não tina momento mais delicioso. No seu prato, tinha laranja, mamão e sua fruta preferida, maçã. Vibrou como se tivesse ganhado na loteria quando emergiu um morango, fruta divina e que ele avia experimentado naquele estado in natura poucas vezes. Após o banquete, que teve direito a repeteco, Raul se encantava com as explicações da professora sobre como as frutas são importantes para crescer saudável. “Toda vez que tiverem oportunidade, comam uma fruta”, dizia a professora.

Raul saiu da escola e foi encontrar sua mãe que estava em um novo emprego. Chegou ao fino prédio da zona sul, cumprimentou o porteiro e pode subir. “Pelo elevador, social, hein, rapaz! As madames podem encrencar”, recebeu o alerta. Assim fez. Entrou pela porta da cozinha e lá estava sua mãe. De uniforme, trabalhando atenta. “Menino, sente-se aqui e não ande pela casa. Abra seus cadernos e faça seu dever. Estarei lá dentro e, por favor, não apronte, pois estamos na casa dos outros”, aconselhou a mãe.

E por três horas Raul ali ficou. Estudou geografia, matemática, português e história. Leu um pouco do livro que a professora pediu para as aulas de literatura e quando terminou, não resistiu ao cheirinho das frutas fresquinhas que estavam ali na sua frente. Pegou uma enorme maçã argentina e deliciou-se. Quando terminava, foi flagrado por sua mãe. “Raul, não é a primeira vez que você faz isso. Porque essa mania de pegar comida na casa das pessoas? Não era pra você ter mexido aqui”. Ele tentou dar uma justificativa: “a professora disse que fruta faz muito bem para a saúde e eu estou com fome”. A mãe rebateu: “mas não era para pegar. Agora terei que me explicar para a minha patroa no meu primeiro dia de trabalho”. 

Passou cerca de 30 minutos, chegou a dona da casa. Era uma senhora já de cabelos grisalhos, a quem todos chamavam de dona Cotinha. Assim que ela entrou na cozinha, ouviu as justificativas da empregada sobre a fruteira sem uma das nobres maçãs. Dona Cotinha então sentou-se ao lado de Raul e começou a conversar com ele. “Rapaz, sua mãe está certa em dizer que não devemos pegar nada sem pedir. Porém, eu devo ter me esquecido de dizer a ela que essas frutas são para todas as pessoas que frequentam minha casa. Pode ficar à vontade para comer quantas quiser, mas primeiro peça à sua mãe, pois ela é a melhor pessoa do mundo para educá-lo”. E saiu.

Muitos anos se passaram, e não faz muito tempo, que Raul descobriu que sua mãe, antes de trabalhar para dona Cotinha, havia sido demitida do emprego anterior porque comeu uma fruta e a antiga patroa implicou. Foi humilhada, praticamente chamada de ladra. Não recebeu o que tinha direito, pois foi alegada justa causa. Raul então se lembrou do quanto colocou o trabalho da mãe em risco ao pegar a maçã na casa de dona Cotinha. Mas a lição valeu por toda a vida: a doçura da explicação fez com que o garoto nunca mais pegasse nada sem pedir permissão. Poderia ter levado uma corsa. Mas ao invés de apanhar, o diálogo foi suficiente para educar.


(*) Breno Eustáquio é professor universitário

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