Desde 1984
João Pedro Pessoa Herthel Silveira
07 de Agosto de 2020
Vinte de Janeiro

Nasci no dia em que minha avó morreu. Não consigo imaginar a mistura de sentimentos que borbulhavam na cabeça do meu pai naquele fatídico, ou abençoado, vinte de janeiro. Por isso, quando criança, não gostava de passar o aniversário com o lado dele da família. Era uma celebração esquisita, com um parabéns seguido de um lamento. Meus seis, sete anos de vida eram também lembranças dela que ficavam cada vez mais distantes, um cheiro esquecido, um tom de voz que fugia da memória.

Dizem que eu pareço com minha avó.

Achava isso o máximo, a tal comprovação do Eterno Retorno,das forças do além, da reencarnação. Enquanto fui crescendo, percebi que aquilo não se passava de uma bobagem. O famoso mistério da vida não se resolveria assim tão fácil, e a semelhança estava mais nos olhos dos parentes. Aquilo era uma maneira de guardar alguém que aos poucos escorria pelos dedos, como água, rápido demais para aqueles que a amavam tanto.

Gostaria de conhecê-la. Ouviria suas histórias, pediria sua benção e contaria a todos os meus amigos que seu bolinho de chuva era insuperável.

Não, não sou sua encarnação ou qualquer coisa parecida, mas tenho a sorte de ter sido amado por quem foi amado por ela, querido por quem ela queria, e assim acho meu jeito de compartilhar um pouco da sua vida. Quando criança, na casa dessa minha avó, havia um quartinho dos fundos, abandonado, com alguns de seus pertences antigos. Era escuro, mofado, eu morria de medo. Retratos, cadeira de balanço, um rádio antigo. Coisas difíceis demais pra jogar fora. Meu avô deixava aquele cantinho por lá, e quando bebia cerveja demais em algum domingo nublado, era pra onde ele ia; refúgio.

Vicente foi uma das pessoas que ela e eu compartilhamos. Me tinha um carinho especial, me via como lembrança. O quartinho era pra quando a saudade doesse, eu, a nostalgia. Me mostrava com orgulho como seu louro dizia “Elza”. Me apresentou o Totó, o Futebol de botão, a Pipa com cerol e outros amores do seu tempo. Do rádio é que eu guardo as melhores lembranças. Foi ele quem me ensinou a melhor maneira de ouví-lo; no escuro, de olhos fechados.

Em domingos de sol, meu avô nunca ia ao quartinho. Com a casa cheia, lembrava de Elza na hora do almoço, batendo com o garfo no copo, pedindo silêncio para o discurso. Nunca tinha nada a dizer, só sorria e chorava, orgulhoso com o que ele e ela tinham construído. Contei na escola suas melhores histórias, das vezes que me dera cachaça escondido, e repassei os seus ensinamentos de carteado aos amigos. Tive o privilégio de ser seu neto e compartilhado dezessete anos de vida com ele. Dezessete anos sem Elza, entre idas e vindas de quartinho.

Quando meu avô se foi, doamos logo suas coisas e as dela, e o seu antigo refúgio se transformou em uma extensão da cozinha. Quando a saudade é gostosa, é nostalgia, tento escrever sobre ele. Quando me dói, sem o seu antigo canto da casa, procuro lembrar do meu aniversário. Penso no dia vinte de janeiro, no que essa data representa. Pra mim, pra ele e pra família. Lembro que quando ele se foi, outra criança nasceu no mundo. Se a morte é a única certeza, assim também é a vida. Que brindemos sorrindo e chorando, sem nada a dizer, como Vicente.


(*) João Pedro Pessoa Herthel Silveira é monlevadense e gosta de escrever crônicas

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