Desde 1984
João Pedro Pessoa Herthel Silveira
29 de Maio de 2020
Gênese

Lembro do sentimento de surpresa. Do banco de trás do Pálio azul lotado; da mãe nervosa, dizendo que aquilo não era programa de família; do riso orgulhoso do pai, de finalmente ter conseguido o aval da esposa; da perna manca do tio, espremida entre as confusões e brincadeiras entre meu irmão e eu, que não se aguentavam da energia de moleque; da estrada, minha maior inimiga; da eternidade que era aquele momento. Milhões de quilômetros separavam a vidinha de um garoto do interior de Minas ao maior acontecimento de sua até então complexa existência; o seu primeiro jogo num Estádio de Futebol.

Meus cabelos escorriam suor por baixo do boné da sorte do pai, que de tão emocionado, passara ao seu primogênito, como uma herança, o amuleto responsável pelo gol de Elivélton na Libertadores de 97. O sol de um dia perfeito de domingo castigava o Pálio que se aproximava da estrutura de concreto onde, mais tarde naquele dia, vinte e duas pessoas correriam atrás de uma bola. O almoço regado a chips e refrigerante dentro do carro só causava mais rebuliço na mãe e alegria na gente, que se empolgava a cada repetição do cd player de “uma partida de futebol” do Skank.

Chegamos, e saímos do carro na maior velocidade que as muletas do tio proporcionavam. A torcida já começava a chegar e as músicas começavam a ser entoadas, me arrepiando toda a nuca. Não entendia absolutamente nada do que significavam, e muito menos, conseguia repeti-las. Me vi paralisado com a quantidade de gente, com a grandeza da esplanada, com tudo. Nos meus olhos de menino, aquilo era o maior lugar do mundo.

Do mais, não me lembro muito do jogo, não tanto como lembro das sensações anteriores, então não faz sentido aqui inventar jogadas e dribles maravilhosos e nostálgicos. Só sei que minha memória “acorda” exatamente aos 88 minutos de jogo.

Sei que o placar marcava 2x1 para o time rival, e nesse momento, minha mãe dizia para irmos mais cedo para evitar um pouco o trânsito devido à debilidade do meu tio. Não me aguentei. Era muita injustiça. Um domingo desperdiçado. Noites e noites sonhando com aquele momento e saio de lá com uma derrota amarga daquelas? Não, não e simplesmente não. Me sento no concreto em um choro inconsolável. A mãe, com a compaixão que só ela tem, me abraça com força, e explica que aquilo tudo era só um jogo e que nada disso importava. O pai, já frustrado e ansioso para ir, devastado pela derrota como todo fanático, levava meu irmão no colo, seguindo a fila de rostos tristes e desanimados. Foi quando o tio se ergue nas muletas para ver melhor o que está acontecendo a alguns metros mais embaixo.

O Estádio se explica em alguns momentos, para aqueles que o conhecem. Não para mim. Silêncio total, cabeças se erguem, calcanhares se firmam, terços se rezam, rádios suspiram. Tento me erguer sobre minhas pequenas chuteiras mas não é o suficiente. O pai, esquece do seu menino e, na total força do hábito, furta o boné que sempre te pertenceu e o afunda na cabeça, mordendo os lábios. Todos os olhos se veem no gramado, menos o meu, que fitava as costas de qualquer estranho na minha frente. É quando a mãe, como todas que só elas, sacrifica sua coluna para me erguer, no momento exato em que o centro avante Fred voleia a bola para o fundo da rede véu de noiva do Mineirão.

O resto, senhoras e senhores, é indescritível. Me desculpem a falta de poesia, mas não existem palavras para descrever o que esse momento significa na minha memória afetiva. Sempre que fecho os olhos, tento enxergar essas quatro pessoas, as que mais amo na vida, se abraçando, enlouquecidas, naquela emoção que só um gol no final de um jogo pode proporcionar. Se, algum dos senhores conseguirem ao menos visualizar essa imagem como eu a visualizo perfeitamente, quase vinte anos depois, vão saber o que para mim, é a definição de paz. Não é uma calma pastagem. Não é o silêncio. A definição daquilo que entendo por paz se encontra naquela tarde. No Pálio azul que fervia ao sol de domingo. No choro inconsolado de um menino apaixonado. No brilho no olho de cada marmanjo molhado de suor cantando juras de amor a um centro-avante de nome Frederico. Na força da minha mãe. Na inocência e na maturidade do Pai. Na determinação do meu tio. No abraço do irmão. É aqui, senhores, que respiro calmamente, sento, e digo obrigado.


(*) João Pedro Pessoa Herthel Silveira é monlevadense e gosta de escrever crônicas

JORNAL IMPRESSO
AS MAIS LIDAS
TWITTER - PRF191MG