Desde 1984
Walter Veloso
27 de Março de 2020
Carta à mãe

João Monlevade, 23 de março de 2020.


Mãe,

já faz muito tempo que não escrevo, a vida é corrida, mudei de cidade, me tornei coordenador, tenho o dia cheio de reuniões, alunos, boletos, vivo na estrada, atropelo coisas e pessoas, não consigo responder whatsapp, as vezes você liga e nem consigo atender, a agenda ta sempre cheia, se abrir ela agora vejo que ta tudo programado até julho... só que de repente tudo PAROU!

Tem cinco dias que o sagitariano aqui, enérgico, comunicativo, impulsivo, está dentro de casa, sozinho, o mundo lá fora exigiu recolher e reconhecer aqui dentro.

Mãe, “hoje eu acordei com medo, mas não chorei”, tomei café sozinho e com calma, acendi uma vela e um incenso, rezei com meus santos, respirei profundo e não consegui lembrar da última vez que consegui parar e fazer isso. Mesmo com a preocupação com o que está acontecendo ali fora consigo enxergar aprendizado, e uma oportunidade imensa de ressignficar e dar nova direção aos caminhos que a vida por vezes nos impõe.

Em meio a pandemia a internet com a lógica neoliberal segue insistindo, maltratando e cobrando de todos: aproveite o tempo ocioso; faça mil cursos; aprenda 2 idiomas; não deixe de treinar em casa; cuidado com a comida vai engordar; leia 10 livros; tenha um coach pra gerir seu tempo; se você não mudar o mundo 4.0 não vai te absorver; seja produtivo; empreenda; tudo segue exaltando privilegiados e excluindo vulneráveis. Ontem fui dormir bem puto da vida ao ler uma postagem que dizia “do ponto de vista econômico...”, o ponto de vista econômico é sempre individual e nunca coletivo, ele vem disfarçado, maquiado, mas segue excludente e sem humanidade.

Nestes dias conturbados poucas são as postagens que dizem, respira, ta tudo bem se você estiver com medo, ansioso, se você não conseguir produzir nada, tente ficar bem consigo, respeite você e o próximo.

Mãe, sei que você e meu pai estão preocupados por estar longe, eu também estou, mas fiquem tranquilos, mesmo longe estou mais perto do que se estivesse aí naquela correria que eu andava, daqui a vida vai tomando um rumo diferente e logo logo eu, que sou da turma do abraço, tô aí pra seguir essa história que dia a dia a gente constrói junto.

Do seu filho que lê Guimarães Rosa e canta Chico Buarque de Holanda.

Walter.


(*) Walter Veloso é professor e coordenador do curso de Direito da Doctum Monlevade

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